Hoje é Quarta-feira de trevas

As semanas dedicadas à quaresma têm na imaginação popular uma série de crendices e de outros motivos folclóricos. Velhos rituais e determinações da igreja são transformados pelo povo e dificilmente podemos recolher a linha originária. As sete semanas dos padecimentos e crucificação de Jesus tomam um aspecto singular, com o medo aos duendes que povoam as noites de quarta e sexta-feiras. Os lobisomens e as visões fazem o seu aparecimento nesses dias, e os relatos não omitem essas coincidências. Na semana da Paixão, mais se acentuam esses fatos, e, entre tantos, relataremos os seguintes:

Com a proibição da igreja do uso de carne, há, naturalmente, no litoral, preferência pelos mariscos, justamente na época em que os caranguejos estão "andando", isto é, quando eles saem todos dos buracos e são apanhados com facilidade, o que coincide com as fases da lua; "andam" três dias antes do crescente e do plenilúnio.

Nunca tive oportunidade de ver, mas é voz corrente que, no Domingo de Ramos, eles ostentam em uma das poãs um galhinho verde, e uma multidão de caranguejos assim perambulam pelo mangue. Na ocasião em que eles "andam" é hábito, em Conceição da Barra, tirar-lhes a poã maior, soltando-os em seguida. Tira-se facilmente com um espeto ou outro instrumento ponteagudo. Segura-se a poã, com uma espetada na primeira articulação, ela se larga do casco. Em seu lugar nascerá outra poã.

O caranguejo, no seu devotamento ao crucificado e rendendo sua homenagem à Semana Santa, em expressão de sentimento, participa dos sons tristes das trevas, e, na quarta-feira, segundo conta o povo que vai buscar o marisco para alimento, ele bate com as poãs, ouvindo-se, então, no mangue, o martelar das trevas.

Não sei se ainda é uso em Conceição da Barra, na Quarta-Feira Santa, fazer uma passeata noturna ao som triste das matracas. Os meninos, porém, ainda fabricam suas matracas para naquele dia baterem-na o dia todo, enquanto o sacristão rodeia a igreja fazendo soar o velho matracão.

Estou certo de que os meninos ainda usam, porque, quando lá estive o ano passado, levei a preocupação de conseguir uma matraca para o nosso museu, e, à minha solicitação, indicaram-me que a procurasse com qualquer menino; porém, preferiram ofertar dois exemplares novos, que cuidadosamente me enviou dona Maria Soares, feitos por um de seus filhos.

São dois tipos de matracas. Um, no formato de uma tábua igual à que as cozinheiras usam para cortar carne, com um lugar ou cabo para se segurar, tendo dois arames grossos em semicírculo, com as extremidades introduzidas num grampo que os prende, permitindo que oscilem, batendo de um lado e de outro, com o movimento que se lhe dá com o braço verticalmente estendido, e produzindo o som do metal contra a tábua. Outro, consiste em duas tábuas retangulares, tamanho 8x12, com outra entre elas, da mesma dimensão, tendo esta um cabo no qual se segura. Com dois furos numa extremidade, pelos quais passa um cordão, prendendo as três tábuas, de maneira que as duas laterais, presas do lado do cabo da do centro, abram-se na ponta, batendo as duas na tábua do centro, produzindo o som.

Recordo-me que, em anos que lá se foram, um grupo de rapazes se dirigiram para os lados do cemitério e de lá vieram, depois, cobertos com um lençol branco, trazendo, uns, um mamão verde descascado com uma vela acesa dentro. Esse cortejo de fantasmas brancos, com uma caveira iluminada, vinha acompanhado pela garotada a bater matraca. Era um espetáculo macabro. Desfilavam solenemente a passos lentos e num matraquear lúgubre, fazendo volta pela igreja e desfazendo-se depois.

A matraca é do ritual da igreja católica, para os sons tristes, pois já na quarta-feira os sinos não tocam, os navios e trens não apitam, nos quartéis as cornetas emudecem e as ordens são dadas no rufar das caixas. Mas, o que significam os fantasmas brancos? E os caranguejos, porque empunham um ramo e batem com as poãs? É o povo, a imaginação anônima, criando e alterando.

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